Para reter talentos, empresas bancam reforma, viagens e até consórcio de imóveis para funcionários

Para reter talentos, empresas bancam reforma, viagens e até consórcio de imóveis para funcionários

Em dezembro do ano passado, Francielle Santos iniciava mais um dia de trabalho no setor de vendas da start-up de arquitetura ArqExpress, em Porto Alegre, quando sua chefe, a arquiteta Renata Pocztaruk, fez uma surpresa. Disse a Francielle que poderia escolher um cômodo da sua casa para ser reformado. Tudo por conta da empresa. Ela seria a primeira a desfrutar de um novo benefício estendido a todos os outros colegas. E escolheu repaginar a cozinha.

— Imagina a felicidade. Mudaram o piso, a bancada, a cortina, a mesa. Até as cadeiras, olha que lindas — exibe Francielle, orgulhosa, numa entrevista por vídeo.

Apesar de salário e os clássicos plano de saúde, vale-alimentação e transporte continuarem decisivos na hora de um profissional aceitar uma proposta de trabalho, as empresas estão tirando da cartola benefícios bem mais criativos para atrair e, principalmente, reter talentos.

De terapia e massagem a ajuda na conquista da casa própria ou para ter um filho, passando por agenda livre e viagens, a tendência é oferecer facilidades que ajudem a equilibrar vida pessoal e profissional e reforcem laços de lealdade entre trabalhador e empresa.

A estratégia pode custar menos para as empresas em meio ao paradoxo atual no mercado de trabalho. Enquanto há uma massa recorde de desempregados, profissionais mais experientes e qualificados são cada vez mais disputados.

É um desafio global, que já crescia antes da pandemia. Numa pesquisa da consultoria internacional ManpowerGroup de 2019, 54% das empresas ouvidas no mundo relataram escassez de talentos, maior percentual em dez anos.

Com a expansão do trabalho remoto na pandemia, a competição por essa pequena elite de profissionais ficou ainda mais acirrada. Se nem sempre é possível cobrir as ofertas salariais que os empregados recebem dos rivais, investir na relação com um pacote de benefícios “fora da caixinha” é a aposta de organizações de diferentes portes.

Identificação com a empresa

Na pandemia, ganharam pontos as empresas que ajudaram a melhorar a casa dos funcionários. Renata, da ArqExpress, conta que uniu o útil ao agradável com a decisão de reformar uma parte da casa de um dos seus 50 funcionários a cada mês.

produtos usados nas reformas são cedidos por parceiros em troca da divulgação das “transformações” nas redes sociais. Os colaboradores gostam, o time pratica e o marketing do serviço de decoração expresso da empresa é reforçado com histórias autênticas.

— Como nossos funcionários estão mais em casa, justamente o objeto do nosso trabalho, veio esta ideia. Já fizemos iluminação, pintura, troca de piso e outras intervenções — diz Renata, que identifica não só um vínculo maior entre empresa e funcionário. — Eles passam a conhecer mais o negócio. Vendem algo que funcionou na casa deles.

Salma Bakhit, diretora médica da MSD para a América Latina, diz que pensaria “milhões de vezes mais” hoje se recebesse uma proposta para trocar de emprego. Seu envolvimento com a empresa aumentou muito depois que recebeu dela ajuda financeira para realizar um sonho antigo: adotar uma filha.

Ela teve quatro meses de licença para os trâmites e R$ 15 mil para as despesas iniciais, como mobiliar o quarto que vai receber, em São Paulo, a adolescente que adotou no Paraná.

Imóveis de R$ 100 mil

Segundo Andres Massoni, diretor de Recursos Humanos da MSD, o programa para ajudar funcionários em processos de adoção — que já teve a adesão de outros três — foi apenas um dos que viraram novos benefícios voltados para o bem-estar pessoal na empresa durante a pandemia. E conquistou Salma.

— Depois de uma determinada idade, você não muda só pelo salário. É uma equação. O cuidado da empresa com os funcionários na pandemia e o apoio para eu adotar minha filha pesam muito, nunca vou esquecer — diz a executiva de 52 anos.

No setor de Tecnologia da Informação (TI), onde os profissionais estão entre os mais disputados, a start-up carioca Rupee, de sistemas de gestão financeira, incluiu no pacote de atrativos um consórcio de imóveis com carta de crédito no valor de R$ 100 mil para empregados e R$ 80 mil para estagiários.

É uma estratégia para tentar manter os profissionais, na faixa dos 25 anos, ali por mais tempo depois do investimento em treinamentos, conta o diretor-executivo Guilherme Baumworcel. As prestações são pagas pela empresa, o que sai mais barato que cobrir propostas salariais. Os 30 funcionários da empresa aderiram.

Folha de pagamento

Marcello Leal, tributarista da N. Tomaz Braga & Schuch Advogados, diz que a estratégia faz sentido. Se o valor de um benefício como esse fosse acrescido ao salário, incidiriam sobre ele encargos trabalhistas. E o impacto no bolso do empregado seria menor:

— Alguns benefícios, como carro e casa pagos para diretores, por exemplo, são considerados como acréscimo do salário. Outros não, mas não deixam de gerar valor, retenção e bem-estar, como um vale-massagem ou terapia. A folha de pagamentos tem um custo altíssimo por causa dos tributos. É uma forma de os dois lados ganharem.

Os novos benefícios seguem a tendência inaugurada pelas gigantes de tecnologia do Vale do Silício, nos EUA, que investem em flexibilidade e ambiente de trabalho descontraído para reter quem pode fazer a diferença nos resultados.

Na filial brasileira do Google, cuja sede californiana é conhecida pelo clima de parque de diversões, foram criadas aulas virtuais de meditação, pilates e alongamento na pandemia, quando cada empregado recebeu US$ 1 mil (cerca de R$ 5,2 mil) para equipar o home office. A esses benefícios, acrescentam-se folgas remuneradas, férias e carga horária flexível.

No Facebook, funcionários recebem um valor em dinheiro para escolher seu próprio benefício ligado ao bem-estar. Podem usar na compra de equipamentos esportivos ou em massagens, por exemplo. Novos pais têm direito ao baby cash, um bônus para despesas com a chegada do bebê.

Os funcionários do app de relacionamentos Bumble, do grupo, ganharam uma semana de folga neste ano como recompensa pela bem-sucedida abertura de capital. Pegou tão bem que ficaram instituídas férias coletivas de duas semanas todo ano.

Sextas mais curtas

No escritório de advocacia Mattos Filho, a estratégia é dar mais tempo livre aos 1,5 mil empregados. No pacote de benefícios, além de folgas remuneradas, está previsto expedientes mais curtos às sextas e o fim do terno obrigatório.

— Remuneração é sempre importante e nunca vai deixar de ser, mas, do outro lado, tem o intangível. Muitas pessoas saem de empresas por causa de ambiente. Nosso desafio é criar alternativas para equalizar essa alta performance. O tempo vale muito dinheiro também — pondera a diretora de Desenvolvimento Humano do escritório de advocacia, Renata Maiorino.

A seguradora Prudential montou um esquema de pontuação de atividades físicas por meio de um aplicativo. Se atingir metas, o funcionário ganha benefícios em transporte, academia e também vouchers para delivery de comida, o prêmio mais resgatado.

A vice-presidente de Parcerias Estratégicas Multicanais, Patricia Freitas, conta que o modelo foi trazido da África do Sul, onde empresas reduziram em torno de 17% sas despesas de saúde.

— A pandemia acelerou essas ações com foco em saúde e novos modelos, assim como a escassez de talentos. As empresas precisam ter escuta ativa para saber o que ofertar dentro da realidade do seu negócio — diz Wilma Dal Col, diretora de Gestão Estratégica de pessoas do ManPowerGroup Brasil.

A L’Oréal Brasil fez uma pesquisa de mercado sobre benefícios antes de adotar tendências como a sexta mais curta e dois dias de folga por mês para o funcionário resolver problemas pessoais. Um subsídio de 40% para o serviço de terapia on-line e viagens como prêmios para quem acumular pontos com atividades físicas são outras apostas no bem-estar.

— A escala de prioridades mudou. A proposta é o bem-estar. A retenção é consequência. Mais que no ganho financeiro, focamos na qualidade de vida. Essa é a estratégia — resume a gerente sênior de RH da multinacional francesa, Nathalia Mainardi.

Fonte: O Globo